Uvas do Tamanho de Dedos

Uvas do Tamanho de Dedos

Sou filho de médico, o que significa que cresci no meio deles. Aprendi a chamar aqueles seres de jaleco branco e estetoscópio dependurado em volta do pescoço de tio. Quando visitava o hospital com meu pai, achava que estava em uma reunião de família gigante. Aprendi também a admirá-los profundamente. Era então de se esperar que na hora de escolher meu curso de faculdade, eu seguisse o caminho do velho. Não segui. Na verdade, apesar da admiração, eu tinha (e continuo tendo) verdadeiro pavor de hospital, de médicos e de qualquer assunto relacionado.

Não sei quando esse pavor começou, mas lembro nitidamente de um episódio que pode muito bem ter ajudado. Eu tinha, sei lá, uns oito ou nove anos de idade e estava brincando com meus irmãos na grama. No meio da correria senti uma fisgada leve na planta do pé. Eu calçava tênis e tirei-o para verificar. Um pequeno prego atravessara a sola de borracha do meu Bamba e mal encostara na sola do meu pé. Foi o suficiente para eu me desesperar. Apesar da pouca idade, já sabia o que era tétano e subi voando para o apartamento onde morávamos para verificar. Entrei no escritório do velho, peguei o grosso volume do Manual Merck de Medicina, que não sei se é um manual respeitável ou não, mas deve ser, pois tinha todas as doenças descritas. Fui direto à letra T e lá estavam todos os detalhes da terrível doença que me acometera. Faziam exatos 12 minutos do incidente com o prego e enquanto lia os sintomas descritos no manual, os sentia, um a um, na sequência em que os lia. Talvez tenha sido o caso mais rápido de somatização da história. Dificuldade de engolir, irritabilidade, endurecimento do pescoço, dos braços e das pernas e dor de cabeça, estava tudo lá. Liguei desesperado para meu pai, aos prantos, contando da má sorte que eu tivera e me despedindo, já sabendo do meu fatal destino. Ele chegou em casa em uns 47 segundos e examinou meu pé. Não demorou em me levar a um colega para uma consulta, digamos, para ver se minha loucura tinha salvação. Não sei se teve salvação ou não, mas eu continuo por aqui.

Muita coisa aconteceu depois daquele dia. Eu me formei em engenharia, o que me manteve longe dos hospitais. Fiz amizades importantes e que duram até hoje. Tive uma banda de rock. Construí uma carreira. Casei (com uma filha de médico, quem diria, um dos que eu chamava de tio), e tivemos um filho lindo. E agora estou aqui, falando do livro que está em suas mãos.

A primeira coisa que você precisa saber sobre este livro, é que ele foi escrito ao longo de mais de cinco anos, como um hobbie. Em 2006 descobri que gostava de escrever e comecei a me arriscar. Montei um blog chamado Confusão e comecei a publicar minhas pequenas histórias. As que eu mais gosto estão aqui. Eu dizia que não tinha quase nada de inédito no que eu escrevia, a maior parte já acontecera na minha vida. É verdade. O blog virou um sucesso de público, com 11 seguidores, entre eles minha esposa, meu pai, meus irmãos, minha sogra, meu cunhado, alguns amigos e duas pessoas das quais eu nunca ouvi falar. Se quiser visitar, passa lá no www.rodrigoacras.blogspot.com

Outra coisa importante de se saber é o motivo de lançar um livro para ajudar um hospital dedicado ao combate ao câncer. Simples, qualquer entidade de profissionais que se dedique a esta causa merece ser ajudada. Ponto. Mas tem outro motivo, não tão simples. Minha vida foi sempre cercada de histórias relacionadas a esta doença. No dia do show do AC/DC na pedreira Paulo Leminski, aqui em Curitiba, descobri que minha priminha falecera (ou finalmente descansara) depois de anos de luta contra a doença. Ela praticamente nasceu com a doença e lutou bravamente por anos, até que não resistiu mais. Lembro-me olhando o ingresso do show que eu não iria e pensando em como aquilo era injusto – não o fato de eu perder o show, que esteja claro, mas o de uma criança tão doce e bem humorada, sem um pingo de maldade na alma, perder a vida daquela maneira sofrida. Era outubro de 1996.

Pouco antes disso, em 1995, depois de ter escrito e ensaiado algumas músicas com nossa recém-formada banda de rock, alguns amigos e eu entrávamos pela primeira vez em um estúdio de gravação profissional (tá bom, semiprofissional). O objetivo era registrar nosso punk rock adolescente em fitas K7 para divulgar a banda. Na época essas fitas chamavam-se fitas demo, de demonstração, mas minha família começou a desconfiar que fosse coisa do capeta. No primeiro dia de gravações, pouco antes de sair de casa para o estúdio, meus pais me contaram que minha madrinha fora diagnosticada com câncer de mama. Ela tem vencido suas batalhas contra a doença desde então, mas aquela notícia me deixou profundamente abalado e com certeza influenciou meu comportamento no estúdio que, segundo relatos e filmagens, foi de lascar, para dizer o mínimo.

Em 2000 foi a vez do tio Carlos. Ele morreu de um câncer fulminante, que provavelmente começou no estômago e se espalhou pelo corpo, até o cérebro. Eu o considerava meu segundo pai. Ele também era engenheiro, dava aulas na Universidade Federal, tinha uma empresa de projetos de instalações elétricas e foi meu primeiro empregador / mentor. Eu estava na França quando ele morreu, visitando uns amigos franceses e ficando noivo da minha querida.

Assim é a vida, não é mesmo? Momentos bons e não tão bons, geralmente juntos, que é para não se acostumar demais com uns, nem sofrer demais com outros. E a minha não teria porque ser diferente. São essas histórias, as boas e as não tão boas, a matéria-prima do que está nesse livro. Não são histórias diretamente relacionadas a hospitais, a médicos, ao câncer, ou aos meus parentes (apesar do tio Carlos aparecer por aqui em “O rei do networking”). São apenas coisas que vivi, coisas que observei e algumas coisas que vieram sei lá de onde, mas que de uma maneira ou de outra foram fortemente influenciadas por isso tudo. Não se escapa de quem se é.

Espero sinceramente que você se divirta lendo essas histórias, assim como eu tenho me divertido escrevendo-as. Como todo o lucro desse livro será encaminhado para o Hospital Erasto Gaertner, uma referência na nossa região no tratamento e combate ao câncer, também espero que você se sinta orgulhoso de tê-lo adquirido, pois você definitivamente tem do que se orgulhar. Meu muito obrigado.

Agora, enquanto você lê, me dê licença que vou ali consultar o Manual Merck. Estou com uma sensação esquisita no estômago. Deve ser fome, mas não custa dar uma olhada.

*Texto escrito em 2010 como prefácio do livro Uvas do Tamanho de Dedos. Desde então o Gabi nasceu (agora são dois sapecas pela casa) e a tia Samira, infelizmente, nos deixou.

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